domingo, 27 de julho de 2014

Edgar, aos doze anos, em fase de desenvolvimento, resolve mostra ao pai o quanto está dividido exibindo então o peitoral trabalhado no hercúleo esforço do exercício diário. O pai apalpando-lhe a barriga explana geograficamente:

— É verdade, eis aqui bem dividido: carne, arroz, feijão...
 Via de regra nos quartéis usa-se livro de ocorrências para registra alguma alteração ao longo do serviço. Existe um padrão para a escrita dessas ocorrências. Geralmente não se pode apagar usar corretivo nem rasurar. Assim sendo em caso de erro, falha ou correção da informação que se deve registrar no tal livro usa-se a vírgula e a palavra “digo”. Por exemplo: ‘...portanto as cinco cadeiras foram levadas dessa seção, digo, as quatro cadeiras foram levadas dessa seção’. Acontece que entre os sargentos do quartel em questão, havia um que se achava verdadeiro literato não só no verbalizar, mas principalmente ao redigir. Gostava de escrever nesse livro de ocorrências. Era cativo dessa prática e não escondia dos demais, pelo contrário, alardeava esse seu gostar aos quatro cantos da caserna. Acontece que numa determinada ocorrência ele escreveu o nome do soldado Diogo com a grafia Digo e para corrigir redigiu da seguinte forma: ‘Onde digo Digo, não digo Digo, digo Diogo!’

sexta-feira, 25 de julho de 2014


O APELIDO DE SOVACO
Por que, porquês e por quê?
Não há educador que escape dessa fase. Assim como não há preparação que nos permita excelência para vivenciá-la.
Vez por outra somos tomados de surpresa, apanhados de jeito que nem Freud, creio, conseguiria mesmo explicar. Desenvolvemos então uma série de dispositivos para responder, aclarar, tornar compreensivo dentro do universo infantil essas questões que despertam nos pequeninos, curiosidades mil, interesses incríveis e por vezes, reflexões de alto nível  e teor filosófico, como por exemplo: por que existe o dinheiro? Por que levamos horas diante da televisão? Por que vibramos quando ganhamos no game?
Acredito que nenhuma questão seja mais complexa do que as de ordem sexual.
— O que é sexo? — pergunta a sobrinha de cinco anos à queima roupa para aquela tia desprevenida que estava tranquila assistindo televisão.
— SEXO? Ai meu Deus! — Murmura a tia vendo-se em papos de aranha. — Sexo?! Seeeexo... Muito bem... É assim: eu sou do sexo feminino e seu tio é do sexo masculino! — e a pequena intrigada olha aquela tia da cabeça aos pés e inconformada diz:
— Você está me enganannndoooo! — então a tia apela:
— Depois nós conversamos, agora não posso lhe dar atenção! — e sai empurrando a garota para fora da sala estimulando-a a retornar à brincadeira com os demais em outro cômodo da casa, enquanto a sobrinha aos gritos inquiria:
— Depois quando? Depois quando? Quannnnndooooo?
Explica-se, mas não se justifica tantos porquês na cabeça de uma gente que nem saiu dos cueiros, ainda. Será a televisão? Os shoppings centers? Será que é simplesmente coisa da modernidade? O certo mesmo é que sobra para nós adultos, que bem ou mal, temos que nos virar.
Temos também aqueles casos das conclusões. Tem gente pequena que vai logo dizendo o que é, por que é, como é, e haja criatividade para explicar e corrigir, não permitindo que o aprendizado, ainda que engraçado, traga outros problemas. Ainda assim, há ocasiões em que acabamos por nos render  e, naquele primeiro momento, deixar como estar para depois ajustar.
Ana Júlia fazia o dever de casa, tarefa que cuidava logo que regressava da escola, antes mesmo de trocar o uniforme. Na época, a criatura contava seis anos de vida quando, determinada, ingressa na sala e pergunta ao pai:
— Pai, “sovaxila” é o apelido de sovaco?





ÍMPAR, PAR
Aquela bola havia surgido do nada.
A situação que antecedia sua aparição era terrível. Um tédio quase melancólico (se é que se pode sentir melancolia nessa idade) tomava conta daqueles dois seres jovens nas suas existências. Uma languidez se apossava daqueles físicos mirrados.
Debaixo daquela frondosa árvore, sem assunto, sem nada para fazer. Estavam assim. Naquele momento tudo o que tinham para se distrair era apreciar uma formiguinha que passava sorrateira, provocando inveja por conta de tantos preenchimentos de vida. Um ou outro inseto que saltava naquela grama, ora verde, ora seca, por entre um ou outro arbusto de mato mais crescido. Um suspiro aqui, outro ali.
Assim, a tarde caía tediosa, lenta, as horas se arrastavam.
Vez por outra, a brisa marinha vinha embalar os galhos daquela árvore que abrigava as duas pessoas que se refugiavam na sua sombra, bom a fazerem de banco sua volumosa raiz.
De vez em quando se olhavam lânguidos, suspiravam fundo e, tornando a descansar o queixo numa das mãos, volviam a posição de silêncio e reflexão, como se o mundo lhes pesasse, como se a vida lhes fosse um estorvo sem fim, sem cor, sem sabor.
Do nada, simplesmente do nada, de repente aquela bola surge rolando lentamente no gramado, alegre, convidativa, transformando o drama, e como num sopro gigantesco e instantâneo, aqueles dois seres foram tomados de uma imensa alegria. Olharam-se simultaneamente como numa cena ensaiada, sorriram mutuamente, saltaram imediatamente para o meio de um campinho que existia logo adiante, compartilhando quase que telepaticamente da mesma ideia:
— Vamos brincar?!
— “Vamu!” — falando erado ainda o nosso personagem.
— Vai pro gol. Eu chuto e tu defende! — Foi a proposta inicial.
— Ah não! Eu que “chuti!”.
— Essa não... Quem chuta sou!
— Ah não, primeiro eu!
— Então tá bom, vamos tirar par ou impar!
— Tá bom, tá certo!
— Um, dois, três e já: ímpa!
— Par!
Estendidas as mãos, puseram-se a olhar um para outro. Renan e Felipe contavam à época uns quatro anos de idade; não sabiam identificar par nem ímpar. Eles apenas repetiam os gestos dos adolescentes que assistiam jogar bola no mesmo campinho na vila em que moravam.
Renan segurava firmemente a bola numa das mãos e Felipe, sério, atento ao menor movimento do parceiro como se estivesse a espreita de uma caça. Assim ficaram por algum tempo, cismando um com o outro. Até que Felipe teve a ideia e mandando o colega manter-se de mão estendida inicia a seguinte contagem:
Já sei: ímpa, pa, ímpa, pa, ímpa, pa...
E deu-se início ao desvendamento da incógnita do par ou impar...    

quinta-feira, 24 de julho de 2014


“Alô, Alô Interior!  Alô, Alô Interior!
 Carta da Cidade do Recife-PE
 Para o Sr. Didildo no Município de Abaetetuba-PA
da Tua Mana Júlia que Aguarda Breve Resposta”.

Num canto extremo, do formato retangular que configurava a cozinha,  que abria para o enorme quintal pelo qual, lá no fundo, se ia encontrar a floresta, ficava o jirau.
Uma banqueta servia de trampolim ou pedestal para Odila que nele, no jirau, vinha fazer tantas tarefas quantas lhe coubesse.
Jirau... Objeto de muitos fazeres numa casa de interior.
Bem ao lado seu, um fogão a lenha, de duas bocas!  Logo cedo lhe tinha a chama acessa para ir se “desacender” só às tantas da noite. Repousava permanentemente ao lado desse fogão incansável, uma saca de carvão sempre cheia. Não me lembro de vê-la vazia.       Comida cheirosa, panelas virtuosas, mãos zelosas que as punham a brilhar depois de horas a queimarem na lenha no ofício do preparo dos alimentos dos humanos, comilões sempre. Quando da chama saíam essas vasilhas, estavam inteiramente irreconhecíveis de seus alumínios lustrosos e espelhados.
A saca de carvão também alimentava o ferro de passar roupas, que costumava trabalhar muito no período da tarde, sobre uma enorme mesa igualmente retangular, posta no cento desse cômodo que era nossa cozinha. Tão imenso era esse compartimento da casa que possuía duas portas: uma nos fundos e outra na lateral, mais uma enorme janela.
Tempos de muita luz. Muito sol. Muita claridade. Tanto que não me lembro de chuvas. Chuvas sempre fecham a claridade das manhãs e não trago essas lembranças tão intensas eram as luzes dos dias de nossa infância acaraense.
Do outro lado da cozinha, fazendo um contraponto com as eras (ERA DO FOGO A LENHA E A ERA DO FOGÃO A GÁS), um fogão butano e uma geladeira a querosene faziam frente ao jirau e ao fogão à lenha. Contudo, bem próximo desses, figurava um belíssimo e frequentadíssimo pote. Água doce. De poço. Sempre fresca. Abundante. Saudades muitas!
Te lembras?
Não me esqueci. Então, queria te contar.
Abraços da tua mana,

Júlia.


Recife, 24 de julho de 2014.

terça-feira, 22 de julho de 2014

 Manhã de 7 de setembro de 2013. Estou em Recife. Muito cedo levantei. Fui até a sala e lá estava o vidro de perfume de Carlos Sacramenta, soberano entre meus livros de Sociologia na estante da sala. São trinta anos de convivência e solicitações de que não o deixe nesse ambiente, destoa da decoração. Sacramenta dorme a sono solto. Lembrei-me que Edgar faz a mesma coisa. Eles começam a se arrumar no banheiro, passam para o quarto e finalizam na sala. Vencida, escrevi esse poema:

O TAL PERFUME

Esse vidro de perfume
Tem lugar na penteadeira
No armário do banheiro
Tem a sua prateleira
Mas o proprietário dele
Que dono da casa é
Insiste em dar-lhe assento
Em outro canto qualquer
De preferência na sala
Nas vistas de sua mulher

O pior é que esse costume
Já vem fazendo herança
O herdeiro q’uele fez
Assisti desde criança
Repete por sua vez
A mesma beligerância
E agora em vez de um
São dois vidros de perfumes
Que na sala descansa.





O PIRÃO da INFÂNCIA

Cresci num interior                                               
No nordeste do Pará
Por nome chamada Acará.
Cidadezinha pacata
Nem existia nos mapas
Sete vias duas ruas
Era o que configurava
Naqueles dias de então
Mas cabe em minha cabeça
Com exata precisão
Feito uma bela gravura
Do meu tempo de criança
Junto com meus quatro irmãos.

Duas torres tinha a igreja
Que o sino badalava
Somente três vezes por dia
Seis da manhã e da tarde
E também ao meio dia
Tocasse n’outros horários
A construção centenária
O seu santo campanário
Era divulgando as gentes
Acontecimento raro
Que carecia anúncio 
A toda população
Daí permitia o vigário
Em imprevistos horários
Do sino a badalação.

Acará não tinha cercas
Medo? Só de assombração!
Também não tinha mendigo,
Nem trânsito, nem ladrão.
Livre agente crescia
Desfrutando bela infância
E o rico tempo de criança
Meu, e dos meus quatro irmãos.
Eu, Inês e Dededa,
Didildo o rei das proezas
Mais o Junior Cabeção.

Brincadeiras de casinha,
Pula corda e peteca,
Bole-bole, macaca,
Passear de bicicleta       
O dia todo inteirinho
Se passava ele todinho
Nessa intensa ocupação.
Que existência prazenteira
Que nos cinco de presente
Na primavera da vida
Ganhamos desses viventes
Chico e Lindinaura
Tão vital feito uma aura.

Hoje são terras distantes
Guardadas no pensamento
Trazidas no coração
Mas nós cinco bem sabemos
Como foi bom ser criança
No Acará que conhecemos
Naqueles dias de então.

Na mexida do pirão
Que farinha d’água fez
Volteei a vida inteira
Relembrando de vocês
Junior, Didildo, Dededa e Inês
Do tempo que nós tudo junto
Andava encantado com mundo
Que pai e mãe pra nós fez!
                   
                                                        
Júlia Câmara
Poetisa Paraense
Movimento Literário
Extremo Norte

domingo, 13 de julho de 2014

Não tá tudo dominado

 Luísa, lia refestelada no sofá da sala, enquanto eu trabalhava no PC e ouvia o celular dela acusar a chegada de mensagens sem que a criatura demonstrasse qualquer perturbação com esse fato. Imaginei que a leitura deveria estar fascinante. Na quinta mensagem não consegui me conter e avisei:
─ Filha! Estão chegando várias mensagens, você não está ouvindo?
─ Ah mãe... é o vovô! – fiquei absolutamente surpresa com a revelação e me manifestei.
─ Ele envia mensagens para você?!
─ Nãooo mãeeee... Creio que ele esteja mexendo no telefone e ai chega aqui pro meu celular.
─ E o quê chega?

─ Veja, ele enviou: w, depois w, em seguida w. - e rematou: ─ Creio que está querendo abrir um site! 

quinta-feira, 10 de julho de 2014

QUE VACAS?!

                      
         O gigante branco havia invadido a geladeira.     
       Há tempos não nos visitava. Assim, os meninos andavam meio cabisbaixos, em silêncio por vezes, coisa difícil naquela família. Mas aqui e acolá, se tirava uma brincadeira um com o outro para quebrar o gelo. Nessas ocasiões de baixa no “bolso de valores” da casa, costumavam ficar mais serenos e quietos, talvez para não perturbar o pai. Cada um, e eram cinco (pai, mãe e três filhos), tinha uma reação diante das situações difíceis e que envolviam dinheiro.
Ana Júlia, a primeira filha, achava que tudo iria passar logo; estavam só sendo testados na sua fé e na sua capacidade de serem solidários e amigos. Edgar não emitia opinião, contudo ficava muito quieto e parceiro nesses difíceis períodos. Agora, Ana Luísa era pra ferrar. Não tinha dó e, sempre que possível, cobrava da mãe por que havia se casado com um homem tão pobre. Uma mulher linda como ela, desposar um pobre? E por aí caminhavam as conversas propostas por Ana Luísa, insatisfeita por ser pobre segundo ela quase na linha da miséria, apesar do IBGE contrariar com seus dados essa constatação “Luisiana”.
         O pai sempre disposto às brincadeiras aceitava e permitia tudo que fosse bem educado e não agressivo. Na hora das refeições e reuniões familiares era quando mais afloravam as gozações pela situação financeira que se experiênciava naquele momento. Uma brincadeira muito comum era lembrar que o padre nas bençãos matrimoniais havia dito: — Na riqueza e na pobreza! E Edgar sempre completava dizendo:
— Acontece que estamos na pobreza, na pobreza, na pobreza... – ríamos muito.
         Evitavam pedir coisas supérfluas e desnecessárias. Tinham certeza de dias melhores e procuravam nesses períodos ser alegres. Era melhor. A mãe acreditava que ser pessimista nessas horas não levava a nada, não ajudava de maneira nenhuma. Então: alegria! Alegria!
Evitavam perguntas constrangedoras também, principalmente, por que naquele tempo nenhum deles colaborava com o orçamento doméstico.
— Ainda! – fazia questão de  lembrar, sempre, Ana Luísa.
Em uma manhã de sábado, Ana Júlia  encontra o pai na cozinha debruçado sobre o que ele costumava chamar de “dever de casa” que nada mas era do que as contas do orçamento doméstico. Querendo ser engraçada a filha arrisca uma brincadeira e diz:
— Tempos de vacas magras, hein?!
— Vacas? Que vacas?         


                                    

terça-feira, 8 de julho de 2014

Foi Mãe Quem Disse!: CRÔNICAS

Foi Mãe Quem Disse!: CRÔNICAS: NA ERA DA TECNOLOGIA Quando os primeiros caixas eletrônicos foram instalados em Belém do Pará, havia uma gravação com uma voz feminina qu...

CRÔNICAS

NA ERA DA TECNOLOGIA
Quando os primeiros caixas eletrônicos foram instalados em Belém do Pará, havia uma gravação com uma voz feminina que nos passava o comando da operação a ser realizada no banco 24 horas.
Carlos tinha por hábito levar os meninos consigo quando se tratava de pequenos afazeres domésticos. Isso os tornou, sem dúvidas nenhuma, desembaraçados.
E foi assim que numa bela tarde de verão estava aquele pai sentado numa cadeira de balanço na calçada de casa, bem à moda paraense, observando a vida sob o cair da tarde.
Os rebentos, todos soltos na Travessa Itororó, bairro do Marco, muito envolvidos com as brincadeiras de correr, pular, andar de bicicleta, empinar papagaio. Um contexto bem suburbano que, indiscutivelmente, permite às nossas crianças, ainda nos dias presentes, as experiências da infância que são imprescindíveis para a coordenação motora, por exemplo.
Vez por outra, um vizinho sentava-se um pouco junto a nós para uma breve conversa. Assim estávamos eu e Carlos no fim do dia, reparando meninos na rua, no belo cair da tarde em Belém do Pará.
Quando de repente, nossa Luísa (três anos), surge em nossa direção, dominada pelo sentimento que o momento despertara, empolgadíssima com uma ideia que acabara de conceber. Impetuosa convida:
— Pai, vamos passear!? Vamos pai!
— De fato Luísa, a tarde está convidativa e é uma grande ideia, mas papai está sem dinheiro. – ESCLARECE Carlos sem o menor problema de revelar a realidade dos fatos para tão pequena criatura. Contudo, Luísa redargui vigorosa:
— NÃOOOO! Vá lá... - e imitando a voz da secretaria eletrônica, resolvida, Luísa põe-se a explicar: p-a-s-s-e s-e-u c-a-r-t-ã-o; r-e-t-i-r-e s-e-u  d-i-n-h-e-i-r-o! - Carlos olha-a com carinho, solta uma gargalhada é conclui:

— Como aprendem rápido as mulheres!

quarta-feira, 2 de julho de 2014

“DESEJO”


Vadia mão
                   Assim...

Nas
           linhas
                      nuas
                               sim.

D
   E
       S
          L
              I
                S
                  A
                       L i n g u a,
Mina,
             Saliva minha
                                   Tua boca
E
   M      
                   MIM.